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Joga Tudo Aí

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Esta é a décima vez que ocupo o confortável chalé que Soninha e Gastão me ofereceram neste sítio. Aqui, pego um tanto de História com maiúscula, misturo história com minúscula e fervo com histórias da minha cabeça. Receita, sabe como é?

Para montar uma receita – seja para cozinhar, fazer cerveja ou escrever – e obter o resultado almejado, é importante dominar o método de produção, conhecer a qualidade dos insumos e saber que funções cada elemento da forma e do conteúdo é capaz de desempenhar no processo. Quando se trata de cerveja, por exemplo, é preciso saber o que – do processo e dos insumos, isto é, da forma e do conteúdo – a deixa turva ou límpida, mais clara ou escura, mais ou menos refrescante, mais ou menos encorpada, com esse ou aquele aroma, sabor e textura. No caso da produção comercial, precisamos respeitar leis, normas, regulamentações, a fim de garantir um padrão de qualidade uniforme, livre de riscos à saúde e ao bem-estar do consumidor. Isso é fundamental, pode ter certeza!

Foto: Fábio Alves / Unsplash

História com minúscula:

Eis que, em plena crise sanitária, no ápice do ócio criativo da quarentena, voltou a circular pelas redes uma matéria de julho de 2019, de um grande portal informativo, imputando ao Presidente da República um decreto permitindo o uso de corantes e espuma artificiais nas cervejas e desobrigando a adição de lúpulo. Ficou uma impressão meio “joga tudo aí” porque o presida liberou.

Vale dizer que alguns portais menores até replicaram o texto, mas não houve outra reportagem a respeito. De qualquer modo, a notícia causou pânico, alvoroço, garganta seca. Um tanto pela cerveja em si, outro tanto pelo jogo político – eu sempre digo a você que cerveja é assunto sério!

História com maiúscula:

A lei de bebidas do Brasil, sancionada em julho de 1994 (Lei n.° 8.918), apresentava uma definição de cerveja não muito pertinente, mas que era suficiente aos modelos de produção de então, quase que exclusivos à larga escala e ao estilo American Lager, até hoje tido por ampla maioria da sociedade brasileira como “cerveja normal”.

Em 2009, já com um aquecimento relevante do mercado cervejeiro criativo, um decreto (Decreto n.° 6.871) regulamentou essa lei de 1994, mas não alterou a definição de cerveja. Assim, nós brasileiros passamos a ter acesso a cervejas com ingredientes que nossa lei não nos permitia aplicarmos aqui. Confuso, né? Pois é, precisava ser revisto. E foi.

Em julho de 2019, um curto decreto presidencial (Decreto n.° 9.902) mexeu na definição de cerveja e revogou alguns parágrafos e artigos da lei de bebidas relacionados à produção cervejeira. A matéria feita à época, e que tornou a circular, resultou da interpretação desse decreto, em função de que alguns dos pontos removidos da lei antiga de fato tratavam das regras de coloração da cerveja, da adição de substâncias espumíferas “não autorizadas expressamente” (isto é, sem novidades: quem já usava, usava o que era expressamente autorizado e indicava o uso no rótulo) e da obrigatoriedade de ser o lúpulo o ingrediente de amargor.

Porém, já em dezembro de 2019, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) publicou no Diário Oficial da União um documento (Instrução Normativa n.° 65) que, associado ao que rege atualmente a lei de bebidas, arrematou os antecessores e aproximou as leis de produção cervejeira do Brasil ao que se pratica internacionalmente. As regras ficaram mais simples e pertinentes. Sim, melhorou bastante!

Um ponto de melhoria interessante: essa Instrução Normativa deixa claro que o lúpulo é obrigatório em toda cerveja, a não ser no caso da cerveja Gruit, um estilo histórico que prevê o uso exclusivo de ervas amargas. O que acontecia no Brasil era que, para fazer uma Gruit comercial, o fabricante deveria adicionar lúpulo, por mais ínfima que fosse a proporção, a fim de atender à lei. Ou seja, para não burlar a lei, o cervejeiro tinha de macular o estilo. Dilema resolvido.

Além disso, a IN 65 reafirma a proibição do uso de edulcorantes e da adição de álcoois estranhos àqueles oriundos do processo fermentativo do mosto cervejeiro – você sabe, né: o álcool da cerveja vem exclusivamente da fermentação!

De um modo resumido, posso te afirmar que cerveja continua sendo o produto que você conhece desde o primeiro gole da vida. O que mudou foi a possibilidade de fazer Gruit do jeito certo e a possibilidade de adicionar ingredientes de origem animal (não mais exclusivamente vegetal), como o mel. As demais alterações, essas de fato significativas, atendem fundamentalmente a questões teóricas e burocráticas de denominação, classificação, registro de produto etc.

Histórias da minha cabeça:

Fazer cerveja é muito divertido, seja em casa ou na fábrica. Balde a balde, tanque a tanque, sempre existe uma tensão relacionada à expectativa pelo resultado. Mas, fazer cerveja com qualidade não admite um comportamento “joga tudo aí”, por mais molejo que tenha o cervejeiro. Existem regras. Sempre sujeitas a serem respeitadas ou experimentadas, mas existem regras. Cozinhar e escrever também são tarefas divertidíssimas e, tal e qual, sujeitas ao exercício das regras. Seja lá mais conservador ou experimental, é importante conhecer os ingredientes e saber como dosá-los e misturá-los. Senão, vira bagunça, foge ao controle, os méritos ficam ao encargo da sorte.

Se nada é tão ruim que não possa piorar, nada que já é ruim precisa ser piorado. Se a cerveja está muito amarga, é insensato pôr mais lúpulo. Se a comida está muito salgada, é loucura colocar mais sal. Se o texto está chato, é sadismo acrescentar mais um parágrafo. O estado crítico da República a todo momento nos coloca moralmente em xeque. Não é legal usar de desinformação para atacar quem vive de mentiras.

Vamos fazer o que é correto, tá ok?

Em tempo!

Tá complicado para todo mundo, especialmente para os pequenos produtores e comerciantes. A dica de harmonização de hoje é: se você puder, compre comida no seu bairro e procure um growler ou uma garrafa de cerveja local. Será uma combinação perfeita!

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Editor Colunas

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