Quando meu pai se metia a cozinhar, todo e qualquer paradigma culinário era posto à prova. O velho ousava. Nem sempre a intuição dele era certeira, sejamos justos. Mas, na ampla maioria das vezes, a cozinha freestyle do Seu Luiz deixava todo mundo impressionado. O velho mandava bem.
Já quanto às bebidas, Seu Luiz era um conservador. Dizia que bebida para ele era vodca. “Vódega”, no correto dizer de um nascido em Canoinhas-SC. Porém, ciente de que esta e as outras branquinhas o levavam muito rapidamente a patamares pouco controláveis, só bebia cerveja.
Meu pai foi sem dúvida uma das pessoas mais interessantes que a vida já me deu a oportunidade de conhecer.
E “quem aqui, como eu, tem [pelo menos] a idade de Cristo quando morreu”, há de se lembrar tanto desse verso dos Titãs quanto da guerra publicitária das maiores marcas cervejeiras do país nos anos de 1990, Brahma e Antarctica. Contem os chineses com Sun Tzu para teorizar a guerra; nós vamos de Quincas Borba, esse tipo de Sócrates à brasileira, dado à luz por seu Aristófanes brazuca, o tal Machado de Assis.
Quincas Borba, personagem machadiano autoproclamado criador da corrente filosófica Humanitismo, “o remate das cousas”, defendia o benefício da guerra argumentando que a supressão de uma das partes era a condição de sobrevivência da outra, mas que a essência de ambas, vencedora e vencida, era mantida (os espólios). Chamava ele a isso de “encontro de duas expansões”.
Já a essa substância de origem, Quincas denominava Humanitas, “o princípio de tudo”. Humanitas seria um elemento idêntico e eterno, presente em todas as coisas. Uma espécie de DNA do Universo.
Olha, não faltou muito para o glorioso Quinca Borba antecipar, com poesia, a Teoria do Big Bang.
Meu pai tinha a mente muito ativa. Ele filosofava como cozinhava, um empolgado. Era difícil tanto acompanhar o ritmo quanto saber aonde ele queria chegar. Eu me sentia diante dele mais ou menos como Rubião diante de Quincas Borba, fazendo força com os olhos para acompanhar o raciocínio e geralmente terminando a conversa com cara de paspalho. O velho me intrigava.
Porém, mesmo ele, um eterno desconfiado, sempre arredio, às vezes avermelhava as bochechas de polaco batateiro e compartilhava a fake news: “não tomo Brahma porque é feita com repolho; só tomo Antarctica, que é feita com batata”. Lembra que eu disse que quase sempre a intuição culinária dele funcionava? Lembra também que eu contei que ele filosofava como cozinhava, né? Pois então, não dá pra ter sucesso o tempo todo. O velho falava…
Quando o Romário fazia gol na Copa de 94 e comemorava levantando o dedinho indicador, fazendo o número 1 da Brahma, o Seu Luiz, mordido, transferia todo o mérito ao companheiro de ataque: “não fosse o Bebeto…”. Tivesse meu pai conhecido o Quincas Borba, acho que cravaria: “Humanitas tinha sede”.
O fato é que, naquele universo que era a mesa da cozinha da nossa casa, ninguém poderia ser capaz de expandir com tanto poder o carisma e a eloquência. “Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.” Na nossa casa só se bebia Antarctica.
Agora, sugiro que você vá à página principal do Cozinha a Dois e digite “batata” no campo Procurar. Você encontrará uma caçamba de receitas! Para harmonizar, se você tiver essa oportunidade, abra uma cerveja com o seu pai. O meu velho adorava!
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Que espetáculo poder compartilhar dessas lembranças Adriano, muito gostoso, ótimas lembranças de Seu Luiz!! Abração!
E não é? :-D