Quando a gente pega no supermercado uma lata de massa de tomate ou um frasco de ketchup não imagina que, por trás do singelo produto, há uma bilionária cadeia de produção, emblemática do capitalismo monopolista contemporâneo. Tem mão de obra infantil e escrava, corrupção, guerras alfandegárias, jogos políticos, cartéis industriais, gambiarras sanitárias, fraudes fiscais e… o protagonismo chinês. Tomate é o de menos! É o que revela o surpreendente livro O Império do Ouro Vermelho – A História Secreta de Uma Mercadoria Universal, do jornalista Jean-Baptiste Malet, lançado no Brasil pela editora Prestígio, em 2019, e que tem versão em filme. Então apresentamos aqui O Império do Ouro Vermelho – Livro vai fazer pensar antes de comprar uma lata de tomates.
O autor é colaborador do jornal Le Monde Diplomatique e traz a nós uma incrível reportagem, com descrições tão precisas quanto impressionantes de cenários e personagens. Generais chineses, políticos italianos, estadistas americanos, mafiosos e ditadores africanos arquitetam negociatas e estratégias que vão além do comércio para ganhar dimensão de geopolítica.
O milagre chinês
No centro da história está a escalada da China para dominar o mercado mundial de concentrado de tomate. Sim, a China que não tem o fruto vermelho na sua tradição alimentar, domina o mercado mundial junto com os Estados Unidos e a Itália. O livro revela que mesmo grandes marcas como Heinz são abastecidas pelos “tonéis azuis” de triplo concentrado de procedência chinesa.
Os concentrados chineses são feitos a partir de uma variedade geneticamente modificada de tomate que nada lembra o fruto vermelho que aparece nos rótulos. Foram pesquisadores americanos que desenvolveram – a serviço da Heinz – um tipo acrescido de genes de tomates selvagens da América do Sul, o que ficou conhecido como “tomate industrial”, com menos água, menos cor e mais duro, para resistir ao transporte sem ser esmagado pelos volumes descomunais.
Tragédias locais
A esmerada reportagem de Malet demonstra que o concentrado de tomate provocou um terremoto cultural, comercial, social e financeiro em várias partes do mundo. Na França, na Itália, no norte da África, e até nos Estados Unidos, o processamento primário de tomates, a partir da produção local, foi abandonado e substituído pela aquisição de triplo concentrado chinês.
Em outras palavras, as grandes indústrias compram a preços muito baixos concentrado chinês que é diluído e reacondicionado para ganhar rótulos como Petti, Cirio, Heinz e muitos outros que se apresentam como italianos.
Enorme consumidor de tomates e derivados, o mercado africano foi inundado por latas e sachês que contém meros 45% de tomates no seu interior recheado com soja, milho e corantes. Aliás, segundo Malet, a invasão do concentrado de tomate chinês no Gabão, por exemplo, tem relação direta com as ondas migratórias em direção à Europa. Plantadores de tomate abandonaram a produção local por não conseguir competir com as latas asiáticas. Despovoaram as lavouras e migram para a Líbia, de onde providenciam balsas clandestinas que os levem especialmente à Itália.
A evolução histórica da bilionária indústria tomateira é um relato visceral do crescimento do agronegócio e do modelo de linhas de produção. Há quem diga, por exemplo, que a linha de produção fordista se originou, na verdade, na indústria de conservas. A tecnologia dedicada à produção de tomates mobilizou engenharia genética, produção de máquinas agrícolas, linhas de produção fabril, engenharia de automação e muito mais. Sem falar na complexa engenharia de negócios montada para concentrar tomates e lucros. Nos EUA, por exemplo, o agronegócio tomateiro ditou regras de imigração para atrair mão de obra barata de chineses, japoneses e mexicanos.
Neoliberalismo
A reportagem-livro é fruto de uma pesquisa jornalística rigorosa e corajosa que sustenta um texto gostoso e profundo. O autor declina a influência da indústria do tomate no desenvolvimento das relações do trabalho desde o século XIX, quando eclode a indústria das conservas. Descreve com requinte a adoção pelas indústrias – tendo a Heinz como principal exemplo – do modelo globalista neoliberal a partir dos anos 80, com demissões em massas e terceirização extrema. Aliás, é nesta onda que o concentrado chinês avança no mercado mundial, ocupando o espaços em outros continentes onde as produções locais foram preteridas pelos executivos.
Documentário premiado
Além do livro, a pesquisa de Malet rendeu também um documentário de 54 minutos que já circula no Brasil em eventos de cinema e debates sobre gastronomia. O filme recebeu o Prix Albert-Londres du Livre em 2018 , concedido às grandes reportagens em língua francesa.
Molho de tomate caseiro
As revelações têm a capacidade de abalar a confiança de qualquer consumidor em produtos derivados de tomate. Até a facilidade de abrir uma prosaica lata de pelati fica comprometida. Dá para confiar no rótulo que diz que veio da Itália? Ou terá sido o país um mero entreposto de produto cultivado por presos políticos em trabalho forçado, no nordeste da China?
Mais seguro mesmo é comprar tomates frescos e orgânicos, de produtores conhecidos, e fazer o próprio molho, não é? Bom, aqui a gente tem a receita, com vídeo e tudo.
Há pessoal, mas eu gosto tanto de ketchup! E agora?!Você pode driblar os conservantes e os produtos de origem duvidosa fazendo o seu com ingredientes conhecidos e saudáveis, e com muito mais sabor. A receita de ketchup caseiro está aqui.
O que falta “falsificar”? Em breve teremos que criar nossas próprias galinhas pra ter ovos de verdade!
É muito absurdo, não é? Nunca antes foi tão importante conhecer os produtores da nossa comida e incentivar a agricultura familiar. Bjos!!