Cortina de Fumaça

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Séculos atrás, os moradores de uma pacata cidadezinha alemã recompensavam seus afazeres diários com a boa cerveja fabricada pelo mestre local. A rotina envolvia os comércios urbanos, a agropecuária em diminuta escala e as obrigações religiosas.

Eis que um dia a igreja da cidade, toda construída em madeira de faia, incendiou.

Foi um sarapatel. Toda aquela gente fazendo o que podia para apagar o fogo. Mas, não teve jeito. A igreja queimou, a cidade ficou em pandarecos e a fumaça tomou conta de tudo, inclusive da cervejaria.

E aí veio a grande surpresa! Tal qual fênix, a cambaleante cidadezinha ressurgiu de suas próprias cinzas. Ainda em ritmo de afogar as mágoas pela catástrofe da igreja reduzida a pó, algumas semanas depois do incêndio a população percebeu algo diferente na cerveja local: estava deliciosamente defumada. Aquele fumacê ficou alguns dias se encalacrando em todas as coisas, inclusive no malte que o mestre cervejeiro estocava.

E foi assim que, de uma tragédia urbana, surgiu um dos produtos mais representativos da cultura daquela comunidade, a cerveja defumada.

Historinha bacana, né?

Tudo lorota.

Juntei duas ou três outras desse tipo e montei essa pra você ler. Outra versão fantasiosa é de que a própria cervejaria pegou fogo. Porém, tal qual fênix, é mito.

Às vezes, uma boa retórica é capaz de persuadir o interlocutor a aceitar absurdos muito mais palatáveis do que a verdade fria. Afinal, é cômodo me convencer por uma história que conta o que me agrada ouvir. E mitos são assim mesmo. Interpretações tão ingênuas quanto fabulosas de questões cuja explicação é difícil ou inconveniente.

No entanto, a verdade sempre derruba o mito.

A pacata cidadezinha em questão é Bamberg, do estado alemão da Baviera. A cervejaria seria a espetacular Schlenkerla. Se você não conhece, prove; se conhece, aproveite a inspiração aqui do escriba da Vargem Grande e vá atrás de uma ampola (sim, a garrafa parece um frasco gigante de remédio, com letras góticas, tudo escrito em alemão).

Rauchbier cerveja defumada

Alguns dos rótulos de linha da Schlenkerla são facilmente encontrados em lojas especializadas em cervejas e nas prateleiras de supermercados maiores. O Brasil também tem excelentes produções de Rauchbier, a cerveja defumada. Por exemplo, a Marzen defumada da Cervejaria Bamberg (saca esse nome!), do interior de São Paulo, é considerada uma das melhores Rauchbiers do mundo. Cervejaria Bamberg também é fácil de encontrar nas prateleiras por aí. Aproveite!

Aproveite também para harmonizar com uma carne de porco assada. Pega a dica do Cozinha a Dois e prepara as costelinhas de porco com purê de ervilhas que o Gastão já recomendou lá em 2012 (mate saudades aqui ).

Tá, mas se a história toda da igreja queimando era só milonga, qual é a verdade, afinal?

Até não muito tempo atrás, sem os modernos meios de combustão, aquecimento, controle de temperatura e exposição dos grãos, o malte era secado do jeito como se conseguia fazer, geralmente em rústicos fornos à lenha, espalhando os grãos sobre a chapa aquecida. No caso de Bamberg, queimava-se a faia, madeira bastante aromática de uma árvore nativa da região. O cervejeiro, percebendo o bom resultado no produto e a aceitação dos consumidores, investiu em acertar o ponto de defumação do malte e desenvolver uma cerveja autêntica.

Não é o enredo mais romântico, porém faz bem mais sentido do que pessoas sobrevivendo em um fumaceiro urbano tão intenso que defuma até estoque de malte. Além disso, em vez de dar crédito ao acaso, faz justiça histórica ao trabalho do fabricante em sintonia com seu público. Como deve ser.

Na próxima, vamos avançar nas conversas sobre maltes e prosseguir na tentativa de superar mitos.

Até!


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